Todo dia é
um milagre conseguir um lugar sentado no vagão do metrô. E todo dia eu consigo
essa bênção. De repente é porque pego o trem muito cedo, ou talvez seja porque
entro no fim da linha, ou seria no começo? Faz diferença por onde ou quando
começa a jornada? Ou o que importa é para onde ela vai? Tudo o que sei é que
consigo sempre o mesmo banco, e ele – quando embarca na Estação Afonso Pena –
também.
Afonso não
demora a entrar e se apoleirar no seu banco. Mochila cheia, fones nos ouvidos,
mas é um livro que mantém sempre a sua atenção. Não sei se seu nome é Afonso,
mas é como o chamo por causa de sua estação.
Cabelos
negros cacheados, olhos castanhos e pele bem branca. Não sei o que ele está
ouvindo, mas o gênero literário é sempre o mesmo: batalhas épicas, sangue,
linguagem rebuscada, exemplares volumosos e bem escritos.
De trás do
meu livro, roubo olhares em sua direção, olhares que não são recíprocos. Será
que ele acha meu livro muito bobo e por isso acredita que também seja assim?
Penso nos livros que lê e me imagino sendo a donzela em perigo e ele, o príncipe
valente. Ou de repente a guerreira que luta ao seu lado, aquela cujo amor não é
correspondido.
Queria
perguntar tanta coisa, mas sei que odiaria que interrompessem minha leitura,
então fico quieta e tento voltar a atenção para o meu livro. Mas todos os
personagens na história agora têm as características de Afonso, independente do
que a autora diga.
Quando eu chego, ela já está lá. Pele cor de café com leite
claro, olhos quase caramelos e cachos largos e escuros que escondem os ombros.
Ela está sempre no mesmo banco, no fundo do vagão, na diagonal do meu que,
graças a Deus, continua vazio, me esperando. Acho que é o destino que os mantém
vazios. Acho que é o destino que quer nos unir.
Ela está sempre lendo, e isso é exatamente o que me faz querer
gritar e sorrir ao mesmo tempo. Uma menina assim e leitora! Como pude ser tão
sortudo? Mas como posso chegar e puxar assunto se ela está sempre lendo?
Me pergunto se ela se apaixona por todos os homens ricos e
fortes e perfeitos que geralmente os livros que ela lê trazem como
protagonistas. Ou melhor, como os interesses românticos das protagonistas. Será
que ela espera encontrar alguém assim na vida real? Nunca poderia ser assim e
acho que a frustraria. E aí vou desejar que os bancos não estivessem mais
vazios.
Ela sempre desce na Glória. Glória. A chamo de Glória. Não sei
se mora lá ou se trabalha no bairro ou se estuda. Não sei nada sobre ela a não
ser que sempre lê. Me imagino perguntando sobre seu livro e vendo sua expressão
apaixonada ao contar a história, cada detalhe, cada nuance. Aí ela pergunta
sobre o meu, nós descemos juntos do metrô e batemos papo bem no meio de uma
estação qualquer, sem nos preocupar com tempo, com lugar.
Me imagino
conversando com ele na lanchonete do lado de fora da estação. Papo fácil de
levar como só os leitores têm. Não importa se nem sabemos o nome um do outro,
mas ao avistar um livro, a amizade, a afinidade é instantânea. Sobre o que
falaríamos primeiro?
Falaríamos sobre tudo. Política, televisão e livros, claro. Será
que surtei? Como posso imaginar conversas inteiras sem nunca ter ouvido a voz de
Glória? Qual será o nome dela de verdade?
Ficar sem vê-la durante o final de semana é a única coisa que me
faz detestar a sexta-feira. E adivinha que dia é hoje?
A minha
estação chega mais rapidamente do que gostaria, e faço meu curto caminho até a
porta. Deixo o vagão e, em um momento de coragem, volto meu olhar para onde
Afonso estava sentado. E ele está olhando pra mim.
Meu coração
esquece de bater por um segundo, e abrimos sorrisos largos, um olhando para o outro.
O apito avisa que a porta vai fechar, e tenho uma ideia louca. Corro para a
porta e vejo Afonso fazer o mesmo. Em segundos, trocamos nossos livros e ele diz
apenas uma coisa:
- Me conta o que achou na segunda - falo rapidamente, e aperto
seu livro contra o meu peito, indicando que farei o mesmo. E a porta fecha.
Metal, vidro e borracha nos separam. Mas serão dois dias de leitura para nós.
Dois dias separados para, na segunda, estarmos mais juntos do que nunca.
- Até segunda, Glória – sussurro ao perdê-la de vista enquanto o
trem pega velocidade.
- Te vejo na
segunda, Afonso – respondo em um suspiro, olhos fixos para o túnel escuro à
minha frente. Túnel que levou Afonso e que vai trazê-lo pra mim de volta na
segunda-feira.
Subo a
escada da estação apertando o livro contra o peito. Noto o marcador no final do
livro e lembro que o meu também não havia sido terminado. E não sinto frustração
por ficar dois dias sem saber o que acontece na história. Será apenas mais um
assunto para falarmos na segunda-feira e, quem sabe, na terça, e na quarta e
....
Subo as
escadas. O dia – a história - está apenas começando.
4 comentários:
Frini
Amei essa coluna, muitos inspiradora, para mim que vou e venho de metrô todo dia, para mim ele é um imenso elevador, onde não temos para onde olhar, então opto pelo livro, em pé ou sentada, mas curiosa como sou sempre acabo querendo ver os que os outros estão lendo, fico tentando ler as capas, o capítulo...e me distraio nessa curiosidade cara de pau!
Afonso e Glória, adorei...eles são muitos, eles somos nós..quem nunca leu no metrô?
Parabéns queridona, amei sua coluna
beijos
Olá Frini,
Adorei! Realmente muito bom mesmo. Quem gosta ama ler não abandona o livro.
Teu conto retrata a realidade envolta naquela magia encantadora que todos gostaríamos de usufruir. Quem não gostaria de estar no lugar do "Afonso" e da "Glória".
Parabéns!!!
Beijos.
Tia Cris
Estou suspirando de emoção. Uma história que podemos dizer que fazemos parte como figurantes. Já sou fã dessa coluna e será que vai ter continuação? Queria tanto saber oq ue vai acontecer na segunda entre o Afonso e a Glória.
Parabéns Frini! #amei
Beijos
Saleta de Leitura
EU REALMENTE ESPERO QUE ESSA HISTÓRIA TENHA CONTINUAÇÃO!
Ok, me desculpe pelo caps lock mas eu precisava mesmo 'gritar' ao terminar de ler esse conto (sobrou pra você). Já fantasiei situações como essas tantas vezes em meio àqueles olhares furtivos pra descobrir qual a leitura do amiguinho dentro do metrô e do ônibus que estou apenas agradecida porque você a finalmente ter escrito tão incrivelmente bem.
Acredito que vou passar horas tentando imaginar a personalidade de cada um deles, que livro eles trocaram, quais encontros e desencontros ainda podem acontecer com eles. Tarefa difícil (não pra você) fazer a gente se envolver tanto com personagens que conhecemos tão pouco e muito menos sabemos o nome.
Talvez eu nunca saiba o que vai acontecer (por favor, escreve mais) mas, com certeza, andar de metrô nunca mais será igual.
Aos Afonsos e as Glórias de todos os dias <3
Beijos,
da Musa do Verão.
OBS: Esse é o segundo conto seu que eu leio aqui na Galera e então vai um apelo pessoal: por favor, escreve mais e mais e mais (meu jeitinho carinhoso e fofo de dizer que adoro tudo que você escreve rs)
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