Na coluna de Natal do ano passado [aqui], eu já tinha citado “O Presente dos Magos” como um dos contos mais importantes que têm como tema o Natal. Hoje resolvi arriscar uma tradução e postá-la aqui, junto com meus votos de boas festas e um 2016 com muitas leituras pra todos nós! A.R.
O Presente dos Magos, de O. Henry*
Um dólar e 87 centavos. Era tudo. Sessenta moedinhas de um centavo. Moedinhas economizadas de duas em duas, às vezes, ao intimidar o dono da mercearia, o verdureiro e o açougueiro até as bochechas de um deles arderem com a acusação de parcimônia que tal negócio íntimo implicava. Três vezes Della contou. Um dólar e 87 centavos. E o Natal era no dia seguinte.
Era evidente que nada se podia fazer, além de desabar no pequeno sofá velho e chorar. E foi o que Della fez. O que provoca a reflexão moral de que a vida é feita de soluços, fungadas e sorrisos, com o predomínio de fungadas.
Enquanto a dona da casa está, aos poucos, passando do primeiro para o segundo estágio, deem uma olhada na casa. Um apartamento mobiliado a oito dólares por semana. Não é que faltassem palavras para descrevê-lo, mas certamente a palavra falta se destacava na observação para o esquadrão da pobreza.
No vestíbulo abaixo, havia uma caixa de correio na qual carta alguma entrava, e um botão elétrico, do qual nenhum dedo mortal poderia obter um som. Além disso, próximo a ela via-se um cartão com o nome “Sr. James Dilingham Young”.
O “Dilingham” fora lançado à brisa durante uma época anterior de prosperidade, quando o nomeado recebia trinta dólares semanais. Agora que a receita encolhera para vinte dólares, eles pensavam seriamente em abreviá-lo para um modesto e despretensioso D. Mas sempre que o Sr. James Dillingham Young voltava para casa e pisava em seu apartamento no andar de cima, era chamado “Jim”, e recebia um grande abraço da sra. James Dillingham Young, já apresentada a vocês como Della. O que é muito bom.
Della parou de chorar e cobriu suas bochechas com o pó facial. Ela estava parada perto da janela e fitava, indiferente, um gato cinzento que caminhava sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã era dia de Natal, e ela tinha apenas um dólar e 87 centavos para comprar um presente para Jim. Andara economizando cada centavo que podia durante meses, e este era o resultado. Vinte dólares por semana não davam para muita coisa. As despesas foram maiores do que ela havia calculado. Sempre são. Somente um dólar e 87 centavos para comprar um presente para Jim. Ela havia passado muitas horas felizes planejando comprar alguma coisa bonita. Algo belo, raro e de boa qualidade ― alguma coisa só um pouquinho digna da honra de pertencer a Jim.
Havia um imenso espelho decorado entre as janelas do cômodo. Talvez você tivesse visto um espelho desses num apartamento de oito dólares. Uma pessoa muito magra e ágil, ao observar o reflexo numa rápida sequência de faixas longitudinais, obtinha uma visão bastante precisa de sua aparência. Della, por ser esguia, tinha dominado a arte.
Subitamente ela girou e se afastou da janela, postando-se diante do espelho. Seus olhos brilhavam, mas o rosto perdeu a cor vinte segundos depois. Rapidamente ela soltou o cabelo e o deixou cair em todo seu comprimento.
Dois eram os bens do casal James Dillingham Young dos quais ambos se orgulhavam tremendamente. Um era o relógio de ouro de Jim, que havia pertencido ao pai e ao avô. O outro eram os cabelos de Della. Se a rainha de Sabá vivesse no apartamento do outro lado do duto de ventilação, Della botaria cabelos para fora da janela para secar apenas para humilhar as joias e presentes de Sua Majestade. Se o rei Salomão fosse o zelador, com todos os seus tesouros empilhados no sótão, sempre que Jim passasse por ele sacaria o relógio, apenas para ver o outro cofiar a barba com inveja.
Então agora os lindos cabelos de Della desciam como cascatas, onduladas e reluzentes, de águas castanhas. O cabelo alcançava até debaixo de seu joelho e quase se tornava uma peça de roupa para ela. Em seguida, ela o prendeu de novo, rápida e nervosamente. Ela hesitou por um instante e ficou parada enquanto uma lágrima e outra pingavam no tapete vermelho surrado.
Ela vestiu o velho casaco marrom; botou na cabeça o velho chapéu marrom. Com um giro das saias e a centelha brilhante nos olhos, passou rapidamente pela porta e desceu os degraus que davam para a rua.
Parou onde a placa dizia: “Mme. Sofronie. Cabelos de Todos os Tipos”. Della subiu correndo um degrau e se recompôs enquanto arfava. Madame, gorda, muito branca, antipática, nem parecia a “Sofronie”**.
― A senhora quer comprar o meu cabelo? ― perguntou Della.
― Eu compro cabelo ― respondeu Madame. ― Tire seu chapéu e vamos dar uma olhada nele.
A cascata castanha desceu em ondas.
― Vinte dólares ― falou Madame, erguendo a massa com mão treinada.
― Me dê rápido então ― retrucou Della.
Ah, e as duas horas seguintes voaram em asas cor-de-rosa. Esqueçam a metáfora confusa. Della estava revirando as lojas atrás do presente de Jim.
E finalmente ela encontrou. Sem dúvida, tinha sido feito para Jim e mais ninguém. Não havia outro presente como este em loja alguma, e ela tinha revirado todas. Era uma corrente de platina para relógio de bolso com um desenho simples e austero, que de modo adequado somente proclamava seu valor pela substância e não pela ornamentação vulgar ― como todas as coisas boas deveriam fazer. Era digna até do Relógio. Assim que a viu, soube que deveria pertencer a Jim. Era como ele. Austeridade e valor ― a descrição se aplicava aos dois. Tiraram dela 21 dólares, e ela se apressou para casa com 87 centavos. Com aquela corrente no relógio Jim poderia parecer adequadamente preocupado com as horas junto a qualquer companhia. Por mais grandioso que o relógio fosse, algumas vezes Jim olhava para ele disfarçadamente por causa da tira de couro velha que usava no lugar de uma corrente.
Quando Della chegou em casa, a agitação deu lugar à prudência e à razão. Ela pegou o ferro de cachear, acendeu o gás e se pôs a trabalhar para reparar a destruição feita pela generosidade somada ao amor. O que sempre é uma tarefa tremenda, caros amigos ― uma tarefa gigantesca.
Quarenta minutos depois, sua cabeça estava coberta com cachos minúsculos, bem rentes à cabeça, que faziam com que ela se parecesse graciosamente com um garotinho preguiçoso. Ela fitou longa, cuidadosa e criticamente o reflexo no espelho.
― Se Jim não me matar ― falou para si mesma ― antes que olhe para mim uma segunda vez, ele vai dizer que pareço com uma corista de Coney Island. Mas o que eu poderia ― Oh! O que eu poderia fazer com um dólar e 87 centavos?
Às sete horas, o café fora passado e a caçarola estava no fundo do fogão quente, pronta para preparar os bifes.
Jim nunca se atrasava. Della dobrou a corrente na mão e se sentou no canto da mesa perto da porta pela qual ele sempre entrava. Então ela ouviu seus passos no degrau do primeiro lance, e empalideceu por apenas um momento. Ela tinha o hábito de rezar uma oração curta e silenciosa sobre as coisas simples do dia a dia e agora murmurou:
― Por favor, meu Deus, fazei com que ele ainda me ache bonita.
A porta se abriu e Jim entrou e a fechou. Ele aparentava magreza e muita seriedade. Coitado, apenas 22 anos e o fardo de uma família! Precisava de um sobretudo novo e não calçava luvas.
Jim parou no lado de dentro da porta, tão imóvel quanto um cão de caça ao sentir o cheiro da codorna. Seus olhos se fixaram em Della; neles via-se uma expressão que ela não podia interpretar, e isso a apavorou. Não era raiva, não era surpresa nem desaprovação, também não era horror ou qualquer sentimento para o qual ela estivesse preparada. Ele simplesmente a encarou com aquela expressão peculiar no rosto.
Della circundou a mesa e foi até o marido.
― Jim, querido ― gritou ela ―, não me olhe assim! Eu cortei e vendi meu cabelo porque não podia passar o Natal sem lhe dar um presente. Vai crescer de novo... Você não vai se importar, não é? Eu simplesmente tinha que fazer isso. Meu cabelo cresce ridiculamente rápido. Diga “Feliz Natal!”, Jim, e vamos ficar contentes. Você não sabe que adorável… que belo e adorável presente eu comprei para você.
― Você cortou seu cabelo? ― indagou Jim, com dificuldade, como se não ainda tivesse assimilado o fato evidente apesar do tremendo esforço mental.
― Cortei e vendi ― falou Della. ― Mas você gosta de mim do mesmo jeito, não é? Ainda sou eu sem o cabelo, não sou?
Jim olhou ao redor do cômodo com curiosidade.
― Você está dizendo que seu cabelo se foi? ― falou, com um ar de idiotia.
― Você não precisa procurar ― falou Della. ― Eu vendi, já disse… vendi e ele se foi também. É véspera de Natal, homem. Seja bonzinho comigo porque ele se foi por sua causa. Talvez os fios na minha cabeça tenham sido contados ― emendou ela com uma doçura subitamente séria ―, mas ninguém já contou meu amor por você. Será que eu devo servir os bifes, Jim?
Saindo do transe, Jim pareceu acordar rapidamente. E abraçou Della. Durante dez segundos, vamos examinar com discreta observação algum objeto sem importância em outra direção. Oito dólares por semana ou um milhão por ano… Qual é a diferença? Um matemático ou um sábio responderiam incorretamente. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava entre eles. Essa observação sombria será iluminada adiante.
Jim tirou um pacote do bolso do sobretudo e jogou-o sobre a mesa.
― Não se engane, Dell ― falou ele ― a meu respeito. Não acho que haja alguma coisa, seja um corte de cabelo, raspar a cabeça ou um xampu, que pudessem me fazer gostar menos de você. Mas se você abrir o pacote pode ver, para começo de conversa, por que fiquei fora algum tempo.
Dedos brancos e ágeis rasgaram o cordão e o papel. Ouviu-se um grito extasiado de alegria; e então, que infelicidade! uma rápida mudança para lágrimas e gemidos histéricos, que necessitavam imediatamente de todos os poderes do homem da casa para acalmá-los.
Pois lá estavam Os Pentes ― o conjunto de pentes para a lateral e a parte de trás, que Della havia adorado muito tempo numa vitrine da Broadway. Belos pentes de puro casco de tartaruga, com beiradas de joia ― da exata cor para usar no belo cabelo que se foi.
Mas ela os abraçou junto ao peito, e finalmente foi capaz de erguer o olhar com olhos sombrios e um sorriso, e falou:
― Meu cabelo cresce muito rápido, Jim!
E então Della deu um pulo feito um gatinho escaldado e gritou:
― Oh, oh!
Jim não tinha visto ainda seu belo presente. Ela o estendeu ansiosamente para o marido na palma da mão aberta.
― Não é elegante, Jim? Eu revirei toda a cidade para encontrar. Você vai ter que ver as horas cem vezes por dia agora. Me dê seu relógio. Quero ver como fica.
Em vez de obedecer, Jim desabou no sofá e pôs as mãos embaixo da nuca, sorrindo.
― Dell ― falou ele ― vamos guardar os presentes por algum tempo. Eles são bonitos demais para usarmos no momento. Eu vendi o relógio para ter dinheiro para comprar os pentes. E agora que tal você servir os bifes?
Os magos, como vocês sabem, eram homens sábios ― homens maravilhosamente sábios ― que trouxeram presentes para o bebê na manjedoura. Eles inventaram a arte de dar presentes de Natal. Por serem sábios, sem dúvida, seus presentes eram sábios, e provavelmente tinham o privilégio de serem trocados caso fossem duplicados. E aqui eu contei com certo tédio a vocês a crônica sem graça de duas crianças bobas num apartamento, que de modo nada prudente sacrificaram uma pela outra os maiores tesouros da casa. Mas numa última palavra aos sábios desses dias, que seja dito que de todos que dão presentes esses dois foram os mais sábios. De todos os que dão e recebem presentes, tais são os mais sábios. Em toda parte, eles são os mais sábios. Eles são os magos.
* Publicado em 1905, o conto é um dos mais famosos do escritor O. Henry, que não poucas vezes foi comparado a Charles Dickens
**O nome da mulher remete, em grego, à ideia de prudência e virtude.
Versão cinematográfica do conto (1952)
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