“A
taberna é o centro do universo da fantasia gaiata.”
Na
fantasia com “f” minúsculo, a ação e seus protagonistas abandonam os salões e
corredores suntuosos dos palácios e vão para os cantos escuros e nem sempre
limpos da taberna — ou de lugares piores, até. Não é raro ver um personagem
embrenhar-se na floresta e sair cheio de arranhões e hematomas, ou se sujar até
o pescoço na lama de um chiqueiro.
Obviamente,
a mudança de cenário reflete a mudança dos personagens: já não temos mais
heróis em armaduras impecáveis, nem donzelas que, a despeito de todo
sofrimento, não tem um único fio de cabelo fora do lugar. E por que essa
mudança de cenário e personagens é importante para a ficção fantástica?
Se
vocês se lembram da coluna passada, no artigo teórico fundamental para a
fantasia, Tolkien estabelece um monte de regrinhas para a criação do texto
fantástico, que incluem certo caráter utilitário da fantasia, o qual aparece no
“final feliz” e na resolução dos conflitos. E ainda que Tolkien estabeleça uma
distinção nítida (e, segundo ele, necessária para que não se julgue o mundo
secundário pelas regras do mundo real) entre o mundo real e o mundo secundário,
o mundo fantástico reproduz certas concepções moralizantes do mundo real: bem x
mal; personagens com características definidas (tudo é preto OU branco; não há
sombras nem tons de cinza); para não mencionar a religiosidade a que Tolkien
remete em sua tentativa de encontrar “consolo” das agruras do mundo real na
ficção.
Ao
criticar Tolkien, no artigo Ursinho
Pooh, Épico, o pai de Elric de Menilboné, Michael Moorcock, associa
corretamente esses aspectos à infantilização da literatura fantástica. E dá pra
ir ainda mais longe e criticar o caráter utilitário e apaziguador que Tolkien
atribui à ficção fantástica. Quem foi que disse que finais felizes são
obrigatórios?! E quem foi que disse que sempre tem que ter um plot twist na trama para nos consolar
dos problemas do mundo real?!
A
sisudez do discurso (e da ficção tolkeniana) também incomodam bastante; por
isso, o riso gratuito de histórias como as das Crônicas de Lankhmar, de Fritz Leiber (pra mim, o inspirador da
fantasia gaiata), são tão importantes. Primeiro, porque em suas aventuras, Fafhrd e Gray Mouser estão longe de serem os
cavaleiros que estamos acostumados a ver, o que impede a “heroicização” dos
protagonistas. Vê-los metidos em encrencas, bêbados ou simplesmente famintos,
os torna “humanos, demasiado humanos”, e ninguém que leia o romance vai querer
se identificar com dois bandidos metidos a valentões!
E
essa é uma das qualidades do texto de Leiber: o texto é puramente literário! Ao
contrário das histórias de fadas que Tolkien defende, com suas qualidades
específicas (a fantasia, a recuperação, o escapismo e o consolo final), o texto
de Leiber não tem pretensão alguma de “cura” da realidade. E justo não
pretender nada além do mero caráter literário e fictício da obra é que faz de
Leiber um dos grandes.
Na
próxima coluna, vou falar de uma menininha que também se
tornou grande e que está completando 150 anos! Já sabem quem é?
Até
a próxima e boas leituras pra todos nós!
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