Provavelmente você já ouviu alguém dizer que J.R.R. Tolkien é o pai da Fantasia
com “F” maiúsculo ou ainda, da fantasia épica (ou da “alta fantasia”), aquela
cheia de valores arraigados, objetivos nobres, heróis valorosos e mulheres etéreas,
certo? Certo, mas a afirmação está errada. Tolkien não foi o primeiro a
escrever sobre isso, nem foi o primeiro a enviar o protagonista numa missão
perigosa em terras longínquas. Se a fantasia com “F” maiúsculo tem um pai, o
nome dele é William Morris.
No livro de Morris, o choroso herói, Golden Walter, é traído pela esposa
e decide partir de navio para conhecer novas e distantes terras. Ao aportar
numa região inóspita, ele se apaixona por uma donzela e precisa escapar de se
tornar amante da mulher que a escraviza. Os jovens apaixonados fogem, mas são
interceptados pelo povo urso, um povo primitivo que passa a acreditar que a
donzela é a nova encarnação da deusa que eles adoravam. Walter e a jovem
separam-se do povo urso e finalmente chegam ao seu destino: o rapaz se torna
rei e desposa a donzela, que, após se tornar rainha, perde seus poderes mágicos
junto à virgindade. Mesmo sem poder recorrer à magia, a rainha volta à terra
dos ursos e os ensina a cultivar, bem como a manter a paz com seus vizinhos.
Walter e a rainha são governantes sábios e gentis, e, ao fim do livro, ficamos
sabendo que a longa prole dos dois governou a cidade após sua morte.
Como se vê, além da missão da qual o protagonista se encarrega, o que
caracteriza a narrativa de Morris é a criação de um mundo secundário, permeado
de seres fantásticos (o povo urso, por exemplo) e de magia. (A gente já falou
sobre isso aqui. Basta dar uma olhada nos arquivos, que vocês vão encontrar os
textos.) Além disso, é evidente que este mundo secundário tem suas próprias
regras: no livro, é justamente a virgindade que garante os poderes mágicos à
mocinha (e acrescentar “mais freudiano que isso, é impossível” é uma tentação).
A expressão “mundo secundário” foi usada pela primeira vez por Tolkien,
num ensaio famoso, Sobre Histórias de Fadas [On Fairy-Stories],
um tipo de carta de intenções do gênero fantástico. Para Tolkien, o mundo secundário
seria um mundo autônomo, sem conexão com o nosso, e a comparação com o mundo
real poderia até ser prejudicial. Para que tal não acontecesse em sua obra
literária, Tolkien encarregou-se de criar um mundo novo em seus mínimos
detalhes: em O Senhor
dos Anéis, por exemplo, cada folha de árvore é descrita à exaustão. Mas
esta obsessão com os detalhes teve seu preço — sabemos altura e compleição de
seus personagens e algo de suas motivações, mas eles são apresentados de forma superficial,
e as nuances de caráter estão praticamente ausentes.
De todo modo, a carta de intenções de Tolkien determinou tanto a sua
literatura quanto a forma como nós lemos e interpretamos a literatura fantástica.
Daí, às vezes, confundirmos a paternidade da Fantasia. Se Morris foi o primeiro
a abordar a heroica jornada de um indivíduo, Tolkien foi o primeiro a estabelecê-la,
de um ponto de vista teórico, o que não deixa de ser um feito importantíssimo!
No próximo artigo, vou falar um pouquinho de Sobre Histórias de Fadas
e das questões éticas e estéticas que Tolkien tentou delinear no texto.
Até lá e boas leituras!
Um comentário:
Ótimo artigo. Tenho esse livro, em outra edição, que procura reproduzir a original embora não seja um facsímile. É um autor que não se pode ignorar quando se trata de fantasia.
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