29 de jan. de 2015

Galera entre letras: A fantasia de gravata apertada

Antes que alguém estranhe o título da coluna, sim, nós hoje vamos falar, como eu tinha prometido, de um dos artigos teóricos mais importantes para os autores de fantasia: Sobre histórias de fadas, de J. R. R. Tolkien. Muitos comentários críticos têm sido feitos ao texto de Tolkien, e entre esses, o artigo de Michael Moorcock, intitulado Epic Pooh [Ursinho Pooh Épico, numa tradução livre] [e que pode ser lido em inglês aqui: http://www.revolutionsf.com/article.php?id=953], e os comentários de China Miéville [aqui, em inglês: http://boingboing.net/2003/11/02/mieville-on-tolkien.html], um interessante autor de weird fiction, são relevantes para a compreensão do próprio conceito de “fantasia” no século XXI. Então, imaginem que Tolkien, o “bom velhinho” de ar professoral, anda sentindo o nó da gravata bastante apertado desde meados dos anos 1970, quando começam a surgir outras ideias a respeito da fantasia.

O bom professor Tolkien.

Como eu falei antes, se Tolkien não é o “pai da criança”, isto é, o pai da Fantasia com F maiúsculo (que inclui cortes, príncipes, nobres cavaleiros e donzelas em perigo), com certeza, é um de seus teóricos mais importantes, pois foi justamente ele quem descreveu as principais características do gênero, de forma organizada e sistemática, pela primeira vez. Depois dele, é óbvio, vieram outros teóricos (e escritores) importantes, e cada dia que passa se torna mais decisivo pensar quais seriam as características da ficção fantástica no século XXI, e se a “fantasia” (com F maiúsculo ou minúsculo) daria conta de incluir temas importantes hoje, tais como: questões de gênero, diversidade, etc. etc.
Obviamente, na época de Tolkien as questões que importavam eram outras, mas ainda assim dificilmente alguém que se proponha escrever ou resenhar um livro de ficção fantástica pode deixar o bom professor inglês de lado nessa hora.

Mas o que tem de tão importante no artigo de Tolkien? Aqui eu vou fazer um resumão do texto dele (que tem tradução para o português; é só procurar) com os pontos que, óbvio, me interessam.
Pra começo de conversa, depois de grandes doses de etimologia, Tolkien diferencia as “histórias de fadas” de outros tipos de história, tais como os contos de viajantes ou os contos que ocorrem durante o sono ou qualquer estado alterado da mente. Essas histórias (como Gulliver ou Alice no País das Maravilhas) não seriam “verdadeiras” histórias de fadas, justamente porque poriam em xeque a credibilidade da história (para Tolkien, as histórias de fadas implicariam uma “suspensão da crença”, ou seja, não faz sentido pensar essas histórias em termos de realismo ou não realismo; realidade ou sonho etc.).
No fim de Alice ----- e pra quem ainda não leu (tem alguém que ainda não tenha lido Alice?!), tem SPOILER bem aqui -----, ela acorda, não é? Para Tolkien, quando Lewis Carroll faz Alice acordar, ele rompe com essa suspensão e diz claramente para o seu leitor que aquilo que Alice viveu não era real (e isso tem um monte de consequências para a interpretação do livro de Carroll). E Tolkien também diz que contos com animais (antropomorfizados ou não) também não são histórias de fadas. Até aqui é fácil concordar com ele.
Num outro momento do artigo (que, na verdade, é uma palestra sobre Andrew Lang --- um importante estudioso de contos de fadas ---, que foi proferida nos anos 1930), Tolkien também chama a atenção para o fato de que histórias de fadas não são necessariamente histórias para crianças, e que uma leitura muito mais rica e profunda somente poderia ser feita na idade adulta ou quando não se fosse mais criança. Bingo, Tolkien!
Esse é um dos preconceitos contra o qual os estudiosos de contos de fadas e literatura fantástica lutam até hoje. E, pior, os autores têm que enfrentar esse preconceito até na hora de vender seus livros! E quantas vezes vocês já ouviram comentários do tipo: “ah, você gosta de livrinhos pra crianças, né?” ou “só lê livros fáceis” etc. etc. ?!
O problema do texto do Tolkien começa justamente quando ele identifica as qualidades específicas das histórias de fadas: a fantasia, a recuperação, o escapismo e o consolo. Pra ele (muito acertadamente), fantasia não tem nada a ver com sonho ou alucinação; ao contrário, fantasiar é uma atividade racionalíssima, pois é criadora de mundo, isto é, ao fantasiar podemos conceber um “sol verde”, por exemplo, e reconhecer, ao mesmo tempo, que o nosso sol é diferente de um “sol verde”. A fantasia não confunde o real; ao contrário, ela escapa para um mundo secundário, que nos permite fugir das agruras do mundo primário, isto é, do nosso mundo. O “consolo” das histórias de fadas aparece no “final feliz”. Depois de um monte de provações e de um plot twist espetacular, o nosso herói termina com a mocinha e tudo se resolve. Para Tolkien, a alegria das “histórias de fadas” é sua principal característica e decorre dessas quatro qualidades mencionadas.
Mas isso é um problema.

Eu poderia retomar as críticas de Moorcock e Miéville para explicar por que histórias de fadas não devem ser alegres no sentido de um escapismo ou da criação de um mundo secundário, com regras bem definidas e antagonismos demarcados. Mas eu vou usar uma outra ideia, que surgiu por acaso numa conversa com o tradutor e autor André Gordirro: a ideia de “fantasia gaiata”. Acho que ninguém nunca definiu a fantasia nesses termos --- e obviamente o nosso pobre amigo André não tem nenhuma responsabilidade em relação ao próximo texto da coluna, no qual vou expor --- e defender --- as qualidades da “fantasia gaiata” (da fantasia que se orgulha de seu f minúsculo)!
Até lá, boas leituras pra todos nós!


Tolkien fanfarrão.

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