Antes que alguém estranhe o título da coluna, sim, nós hoje
vamos falar, como eu tinha prometido, de um dos artigos teóricos mais
importantes para os autores de fantasia: Sobre
histórias de fadas, de J. R. R. Tolkien. Muitos comentários críticos têm
sido feitos ao texto de Tolkien, e entre esses, o artigo de Michael Moorcock,
intitulado Epic Pooh [Ursinho Pooh Épico, numa tradução livre]
[e que pode ser lido em inglês aqui: http://www.revolutionsf.com/article.php?id=953],
e os comentários de China Miéville [aqui, em inglês: http://boingboing.net/2003/11/02/mieville-on-tolkien.html], um interessante
autor de weird fiction, são
relevantes para a compreensão do próprio conceito de “fantasia” no século XXI.
Então, imaginem que Tolkien, o “bom velhinho” de ar professoral, anda sentindo
o nó da gravata bastante apertado desde meados dos anos 1970, quando começam a
surgir outras ideias a respeito da fantasia.
O bom professor Tolkien.
Como eu falei antes, se Tolkien não é o “pai da criança”,
isto é, o pai da Fantasia com F maiúsculo (que inclui cortes, príncipes, nobres
cavaleiros e donzelas em perigo), com certeza, é um de seus teóricos mais
importantes, pois foi justamente ele quem descreveu as principais
características do gênero, de forma organizada e sistemática, pela primeira
vez. Depois dele, é óbvio, vieram outros teóricos (e escritores) importantes, e
cada dia que passa se torna mais decisivo pensar quais seriam as
características da ficção fantástica no século XXI, e se a “fantasia” (com F
maiúsculo ou minúsculo) daria conta de incluir temas importantes hoje, tais
como: questões de gênero, diversidade, etc. etc.
Obviamente, na época de Tolkien as questões que importavam
eram outras, mas ainda assim dificilmente alguém que se proponha escrever ou
resenhar um livro de ficção fantástica pode deixar o bom professor inglês de
lado nessa hora.
Mas o que tem de tão importante no artigo de Tolkien? Aqui
eu vou fazer um resumão do texto dele (que tem tradução para o português; é só
procurar) com os pontos que, óbvio, me interessam.
Pra começo de conversa, depois de grandes doses de
etimologia, Tolkien diferencia as “histórias de fadas” de outros tipos de
história, tais como os contos de viajantes ou os contos que ocorrem durante o
sono ou qualquer estado alterado da mente. Essas histórias (como Gulliver ou Alice no País das Maravilhas) não seriam “verdadeiras” histórias de
fadas, justamente porque poriam em xeque a credibilidade da história (para
Tolkien, as histórias de fadas implicariam uma “suspensão da crença”, ou seja,
não faz sentido pensar essas histórias em termos de realismo ou não realismo;
realidade ou sonho etc.).
No fim de Alice
----- e pra quem ainda não leu (tem alguém que ainda não tenha lido Alice?!), tem SPOILER bem aqui -----,
ela acorda, não é? Para Tolkien, quando Lewis Carroll faz Alice acordar, ele
rompe com essa suspensão e diz claramente para o seu leitor que aquilo que
Alice viveu não era real (e isso tem um monte de consequências para a
interpretação do livro de Carroll). E Tolkien também diz que contos com animais
(antropomorfizados ou não) também não são histórias de fadas. Até aqui é fácil
concordar com ele.
Num outro momento do artigo (que, na verdade, é uma
palestra sobre Andrew Lang --- um importante estudioso de contos de fadas ---,
que foi proferida nos anos 1930), Tolkien também chama a atenção para o fato de
que histórias de fadas não são necessariamente histórias para crianças, e que
uma leitura muito mais rica e profunda somente poderia ser feita na idade
adulta ou quando não se fosse mais criança. Bingo, Tolkien!
Esse é um dos preconceitos contra o qual os estudiosos de
contos de fadas e literatura fantástica lutam até hoje. E, pior, os autores têm
que enfrentar esse preconceito até na hora de vender seus livros! E quantas
vezes vocês já ouviram comentários do tipo: “ah, você gosta de livrinhos pra
crianças, né?” ou “só lê livros fáceis” etc. etc. ?!
O problema do texto do Tolkien começa justamente quando ele
identifica as qualidades específicas das histórias de fadas: a fantasia, a recuperação,
o escapismo e o consolo. Pra ele (muito acertadamente), fantasia não tem nada a
ver com sonho ou alucinação; ao contrário, fantasiar é uma atividade
racionalíssima, pois é criadora de mundo, isto é, ao fantasiar podemos conceber
um “sol verde”, por exemplo, e reconhecer, ao mesmo tempo, que o nosso sol é
diferente de um “sol verde”. A fantasia não confunde o real; ao contrário, ela
escapa para um mundo secundário, que nos permite fugir das agruras do mundo
primário, isto é, do nosso mundo. O “consolo” das histórias de fadas aparece no
“final feliz”. Depois de um monte de provações e de um plot twist espetacular, o nosso herói termina com a mocinha e tudo
se resolve. Para Tolkien, a alegria das “histórias de fadas” é sua principal
característica e decorre dessas quatro qualidades mencionadas.
Mas isso é um problema.
Eu poderia retomar as críticas de Moorcock e Miéville para
explicar por que histórias de fadas não devem ser alegres no sentido de um
escapismo ou da criação de um mundo secundário, com regras bem definidas e
antagonismos demarcados. Mas eu vou usar uma outra ideia, que surgiu por acaso
numa conversa com o tradutor e autor André Gordirro: a ideia de “fantasia
gaiata”. Acho que ninguém nunca definiu a fantasia nesses termos --- e obviamente
o nosso pobre amigo André não tem nenhuma responsabilidade em relação ao
próximo texto da coluna, no qual vou expor --- e defender --- as qualidades da
“fantasia gaiata” (da fantasia que se orgulha de seu f minúsculo)!
Até lá, boas leituras pra todos nós!
Tolkien fanfarrão.
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