Eu não sei vocês,
mas eu sou obcecada com os parágrafos iniciais dos livros. Já faz um bom tempo
que coleciono o primeiro parágrafo de livros clássicos e, de uns tempos pra cá,
ando anotando as frases iniciais que mais me chamam atenção nas histórias que
leio.
Até então, eu
achava que era só mania minha, mas há algum tempo, li um artigo do Stephen King
que falava das semanas (às vezes, anos) que ele leva para escrever a primeira
frase de um livro, e de como vai reescrevendo sem parar até encontrar as
palavras certas.
Claro que ninguém
deixa de ler um livro se as primeiras frases forem ruins, mas eu me lembro de
já ter lido livros ruins por causa de uma frase inicial boa (e de um título bom
também, outra das minhas obsessões).
Pra mim, os
primeiros parágrafos ideais são aqueles que me ajudam a compor mentalmente o
local e o tempo em que a história se passa. E se começar com uma frase épica do
tipo “há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante...” (ok, esta frase
não vem de um livro, mas tem o nível de epicidade perfeito pra vocês entenderem
do que estou falando...), bom, já me ganhou!
E tudo bem se as
primeiras linhas me põem diante de um drama realista e das consequências de um
evento trágico: eu também adoro derramar lágrimas pelos personagens!
Outra coisa que me atrai é quando percebo que as primeiras
linhas me remetem a histórias clássicas que eu já li, assim fica parecendo que
eu e o autor compartilhamos um segredo. Um dos meus livros favoritos é Pequeno Irmão, do Cory Doctorow. Não
tem como não simpatizar com o Marcus Yallow, um dos caras mais vigiados do
mundo, e que, antes de a história começar, era conhecido como “w1n5t0n” (e nada de achar que se
pronuncia “dáblio-um-ene-cinco-tê-zero-ene”!).
É Winston mesmo, tal como o protagonista do livro 1984. Deu pra entender?!
E essas frases iniciais podem ser tão marcantes que
transformam o seu modo de encarar a realidade. “O céu de início de
verão tinha cor de vômito de gato.” Nunca mais consegui
olhar para o céu sem lembrar disso. Não sei se vocês sabem, mas esta frase de Feios, do Scott Westerfeld, é uma
homenagem a Neuromancer, de William
Gibson, que inicia assim (uso aqui a tradução de Fábio Fernandes para a editora
Aleph): “O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal
fora do ar.”
Legal, né? O Westerfeld não só cria uma das frases mais
incríveis para a abertura de um livro como ainda homenageia um mestre da ficção
especulativa! Tem que ser muito gênio pra fazer isso!
E aproveitando que no dia 30 de setembro se comemora o dia do
tradutor, resolvi homenagear o trabalho dos colegas citando os primeiros
parágrafos de quatro traduções que eu amo. Tem de tudo aqui: drama, epicidade,
conspirações e... vômito de gato!!!
Divirtam-se e boas leituras até o mês que vem!
A Companhia Negra, de Glen Cook. Record, 2012. Tradução de Edmo Suassuna.
Houve prodígios e
maravilhas suficientes, é o que o Caolho diz. Temos de culpar a nós mesmos por
interpretá-los mal. A deficiência do Caolho não prejudica nem um pouco sua
admirável capacidade de olhar para trás.
Relâmpagos num céu
limpo atingiram a Colina Necropolitana. Um dos raios acertou a placa de bronze
que selava a tumba dos forvalakas, obliterando metade do feitiço de
confinamento. Choveu pedras. Estátuas sangraram. Sacerdotes de vários templos
relataram vítimas de sacrifício sem corações ou fígados. Uma dessas vítimas
escapou depois de ter as tripas abertas, e não foi recapturada. Na Caserna da
Forquilha, onde as Coortes Urbanas estavam aquarteladas, a imagem de Teux se
virou completamente para trás. Por nove noites seguidas, dez abutres negros
circularam o Bastião. Então um deles expulsou a águia que vivia no topo da
Torre de Papel.
Feios, de Scott
Westerfeld. Galera Record, 2010. Tradução de Rodrigo Chia.
O céu de início de verão
tinha cor de vômito de gato. Obviamente, Tally pensava, quando a dieta do seu
gato se resume por um bom tempo à ração sabor salmão. Movendo-se rapidamente,
as nuvens até lembravam peixes, desfeitas em escamas pelos ventos das altitudes
elevadas. À medida que a claridade se ia, lacunas azuis da cor do mar
apareciam, como um oceano de cabeça para baixo, frio e infinito. Num verão
qualquer, um pôr do sol como esse teria sido lindo. Mas nada era lindo desde
que Peris havia se tornado perfeito. Perder seu melhor amigo é uma droga, mesmo
que apenas por três meses e dois dias.
Métrica, de Colleen
Hoover. Galera Record, 2013. Tradução de Priscila Catão.
Kel e eu guardamos as
duas últimas caixas no caminhão de mudança da U-haul. Puxo a porta para baixo e
tranco o ferrolho, fechando lá dentro 18 anos de lembranças, incluindo todas as
relacionadas com meu pai.
Ele morreu há seis
meses, tempo suficiente para que meu irmão de 9 anos, Kel, não chore mais toda
vez que falamos nele. Mas ainda é pouco tempo para aceitarmos as consequências
financeiras de se passar a ter um lar com apenas um chefe de família. Um lar
incapaz de arcar com os custos de ficar no Texas, na única casa que já conheci.
Pequeno Irmão, de Cory
Doctorow. Galera Record, 2011. Tradução de André Gordirro.
Sou aluno do último ano
do Colégio Cesar Chavez de São Francisco, localizado no ensolarado bairro de
Mission, o que me torna uma das pessoas mais vigiadas do mundo. Meu nome é
Marcus Yallow, porém, quando esta história começou, eu me chamava w1n5t0n. Se pronuncia
“Winston”.
Não se pronuncia
“dáblio-um-ene-cinco-tê-zero-ene”, a não ser que a pessoa seja um inspetor sem
noção, daquele tipo que está tão por fora que ainda chama a internet de “a
supervia da informação”.
Quem quiser deixar seus primeiros parágrafos preferidos nos
comentários pode fazer isso também!
Essa ilustração
incrível é do Tom Gauld. Dá pra conhecer mais sobre o trabalho dele aqui: http://www.flickr.com/photos/tomgauld/
Um comentário:
Pequeno Irmão me interessou tão logo você mencionou o nome do personagem, Winston. Não conhecia esse livro, mas como li recentemente 1984, fiquei viciada em tudo o que faça referências a essa história genial.
Acho que as frases iniciais de um livro têm aquele poderzinho de nos pegar, de chamar nossa atenção e dizer um pouco a quê veio. Assim como os primeiros segundos de um comercial de TV. Se fosse escolher um primeiro parágrafo do qual gostei bastante, seria o do livro O Grande Gatsby.
Um beijo, Livro Lab
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