Pois é, ninguém que tenha navegado na Internet ou acessado as redes sociais pôde deixar de notar a agitação em torno do primeiro trailer do filme da Malévola, produzido pela Disney, com a atriz Angelina Jolie no papel principal.
O filme se propõe a contar as origens da vilã mais amada da Disney (título que lhe foi conferido depois de uma pesquisa entre o público) e mostrar Malévola, como diz a atriz que a interpreta, “como uma mulher épica (de um modo diferente).” No fim das contas, a vilã é “capaz de fazer muitas coisas e o fato de se proteger e ser agressiva não significa que ela não tenha outras qualidades [mais ternas]. É preciso solucionar o grande enigma que ela é.”
Mas vocês sabiam que o personagem da Malévola não existia nas muitas versões clássicas da história? Para entender a criação desta vilã, vou contar um pouquinho sobre as primeiras versões de A Bela Adormecida.
A primeira versão do conto de fadas, na verdade, nem tem esse título e foi escrita num dos muitos dialetos da Itália (para ser mais precisa, em napolitano), no século XVII. Chama-se Sol, Lua e Tália, e conta a história da jovem Tália, de seus dois bebês (sim, Tália, enquanto dorme, concebe gêmeos), de um cozinheiro muito generoso e de uma rainha muito, mas muito má e ciumenta, que, como toda rainha cruel, se dá mal no fim da história.
(Aqui tem uma tradução do italiano para esse curioso relato que, no entanto, não é uma história para crianças, mas para adultos).
A versão mais próxima da história que conhecemos é justamente a do francês Charles Perrault, escrita também no século XVII, e que aparece em Histórias ou Contos de Tempos Passados, livro que tem o subtítulo de Contos de Mamãe Gansa, pelo qual ele é mais conhecido hoje. Nele, temos a história A Bela Adormecida do Bosque, onde já encontramos alguns dos elementos presentes nas versões modernas do conto: a roca de fiar e uma fada muito velha e vingativa, que lança o feitiço na princesinha no dia de seu batizado. A fada má aqui ainda é vista como uma personagem caricata e, de certa maneira, ela está muito mais próxima da Rainha Má da Branca de Neve do que da Malévola.
O curioso, nesta versão, é que, após acordar do sono de cem anos, se casar com o príncipe e ter dois filhos, Aurora e Dia, a bela princesa passa a ser perseguida pela sogra que, na verdade, é uma rainha ogra e pretende devorar a princesa e suas crianças, não sem antes exilá-la na floresta (daí o bosque do título). Esta versão é bem rocambolesca, tem vilões demais e o papel da fada má é diminuto.
A versão mais famosa é a dos Irmãos Grimm, que data do início do século XIX e tem como título A Pequena Rosa, nome dado à princesa. Nesta versão, que termina com o casamento do príncipe com Rosa e um “felizes para sempre”, as fadas são substituídas por 13 mulheres sábias do reino.
Bom, e como é que nós chegamos à Malévola?, vocês devem estar se perguntando.
A Bela Adormecida é um desenho lançado em 1959, o terceiro desenho baseado em contos de fadas, após o lançamento de Branca de Neve, de 1937, e de Cinderela, em 1950. Como já mencionei antes, a exemplo da Rainha Má, a Madrasta de Cinderela e suas meias-irmãs são também personagens caricatos, que dificilmente despertariam a simpatia de alguém.
A Bela Adormecida é lançado em plena “segunda onda do feminismo”: sobretudo, pelo advento das duas guerras, as mulheres entraram no mercado de trabalho, ganharam o direito de votar e, no contexto internacional, vive-se a Guerra Fria, onde o papel dos mocinhos e dos bandidos parece bem determinado. E o que isso tem a ver com um desenho animado? Muita coisa.
A Malévola foi a primeira das personagens malvadas dos três desenhos a ser retratada de forma não caricatural. Apesar da pele cinza-esverdeada, ela tem um porte que não fica a dever a nenhuma modelo de passarela. E... uma curiosidade... apesar do modelo para a Malévola ser a atriz Eleanor Audley, não seria difícil imaginar uma top-model (ainda que, na época, não se usasse o termo) como Carmen dell’Orefice, com seus traços exóticos e rosto anguloso, além do corpo esguio, como referência para a vilã.
Eleanor Audley |
Carmen dell'Orefice |
Carmen dell'Orefice |
Além disso, Malévola é a primeira vilã que rivaliza com a mocinha da história (e não é à toa que muita gente torceu para que ela desse cabo de vez da Aurora no desenho, rs): ela tem as melhores falas, é irônica e inteligente, e, de certa forma, coloca em alto e bom tom tudo aquilo que gostaríamos de dizer quando nos sentimos prejudicados ou rejeitados pelos outros. Uma das minhas falas preferidas é justamente a chegada de Malévola na apresentação da princesa Aurora ao restante do reino:
Ah, mas que aglomeração brilhante, rei Estevão: realeza, nobreza, cortesãos e... ha ha ha... que graça... até a ralé. Eu realmente, com tristeza, estranhei não ter sido convidada [ao que uma das fadas, Primavera, retruca: Não é bem-vinda!]... Não sou. Oh, Deus, que terrível situação... julguei que tivesse sido apenas um descuido. Bem, sendo assim, é melhor que eu me vá...
E tem mais: Malévola tem poder. Poder de verdade. Em vez da maldade da Rainha Má da Branca de Neve, cujo preço é a perda da beleza e o envelhecimento, ou a implicância vil da Madrasta e das irmãs da Cinderela, Malévola realmente é poderosa. Ela faz o príncipe de refém, comanda um exército de goblins e ainda se transforma em um imenso dragão negro, símbolo incontestável do poder maligno (ao contrário da Rainha Má, que apenas consegue se transformar numa velha encarquilhada e corcunda e que, nessa transformação, ainda perde poder...).
Por essas e por outras, Malévola acabou se tornando uma vilã tão admirada e, não sem motivo, o filme da Disney que estreia no ano que vem causou um furor tão grande: conhecer as origens e as motivações desta personagem tão complexa certamente vai ser fascinante. E, como ressaltou uma amiga, especialista em contos de fadas e professora da Universidade de Boston, o fato de o trailer se concentrar no diálogo entre duas mulheres (Aurora e Malévola) já é, por si só, um acontecimento.
O trailer oficial está aqui
Divirtam-se!
Minibio:
Ana Resende trabalha como preparadora de originais e tradutora, e é colaboradora da Galera Record, entre outras editoras. Workaholic assumida, sua leitura favorita são os contos de fadas. Acredita em fadas e dragões, mas acha que o príncipe encantado não passa de uma lenda.
Twitter: @hoelterlein
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