No fim do ano passado, comemorou-se o bicentenário da primeira edição
dos Contos fantásticos infantis e
domésticos, dos irmãos Grimm. Muito embora os Grimm não tenham sido os
únicos a colecionarem e publicarem contos de fadas, eles são, sem dúvida, os
mais famosos.
Gente muito séria, como Maria Tatar e Jack Zipes, vem estudando contos
de fadas durante toda a vida e tenta entender por que ainda hoje eles são tão
importantes pra nós, e muito se tem discutido sobre a questão do gênero nos
contos de fadas (eu comecei a falar disso no mês passado, com o artigo sobre o
livro Todo Dia, do David Levithan, e
pretendo voltar mais vezes ao assunto) e a maneira como homens e mulheres são
representados neles.
Em geral, as heroínas dos contos seguem as convenções sobre as virtudes
femininas, e o “felizes para sempre” parece remeter unicamente à ideia do
casamento e da criação dos filhos (da mesma forma, os homens sempre são
considerados os provedores, isto é, são eles que cuidam do sustento da casa e
seu sucesso é medido pela capacidade de desempenhar este papel).
Bom, nada contra quem acha que o único objetivo na vida de uma mulher é
casar e ter filhos (viu, Bella Swan?!), mas como fica quem nunca pensou em se casar
nem em ter filhos e que busca a realização profissional? E o que dizer de quem
não tem cabelos longos e louros, e nem é tão bonita quanto as mocinhas dessas
histórias, mas que, óbvio, se acha inteligente e interessante o bastante para
sonhar e realizar coisas nessa vida? E se ela não quiser ficar em casa fiando
ou tecendo, mas sim viver grandes aventuras mundo afora, sem ajuda de fadas,
anões ou magos?!
Bom, os contos de fadas representam a visão de mundo de quem conta os
feitos, e é por isso que cada vez mais vemos — e lemos — releituras dessas
histórias fantásticas, que tentam aproximá-las da nossa experiência
contemporânea, nas quais um monte dessas convenções vai ser questionado.
***
Dia desses, navegando pela internet, eu me deparei com um texto
cujo título em português seria Seis contos de
fadas para a mulher moderna. Achei tão incrível que perguntei à autora, Renee Lupica,
se poderia traduzi-lo (e adaptá-lo) para a coluna deste mês. Felizmente, ela
gostou da ideia e vocês podem lê-lo a seguir.
O original está aqui:
I.
Era uma vez uma mulher que nunca se casou, mas que teve muitos
relacionamentos satisfatórios, um emprego que a permitia viver com conforto, um
apartamento que decorou e no qual morava sozinha, e hobbies que estimulavam sua
mente.
Fim.
II.
Era uma vez um casal que tentava, mas que não conseguia ter filhos.
Quando acharam que já estavam velhos demais para ser pais, perceberam que
tinham renda suficiente para viajar pelo mundo. Foi o que fizeram, e foi incrível;
os dois ficaram satisfeitos e ninguém se lamentou por causa disso.
Fim.
III.
Era uma vez uma mulher que foi abordada por um bêbado num beco escuro;
no entanto, ele foi muito educado e explicou que viera até o bar de carro, mas,
como era responsável, agora não queria dirigir até a própria casa. Seu telefone
celular não estava funcionando, e ele pediu à mulher que chamasse um táxi. Ela
chamou, ele agradeceu, e eles se despediram animadamente antes de seguirem
caminhos diferentes.
Fim.
IV.
Era uma vez uma mulher muito competente, que sabia que seu desempenho valorizava
a empresa para a qual trabalhava, por isso, mesmo estando muito nervosa, ela
conversou com o patrão, pediu um aumento e ele foi concedido.
Fim.
V.
Era uma vez uma mulher que cresceu no interior do país e continuou morando
ali depois que se casou com o garoto que namorava desde o ensino médio, pois o
emprego dele estava ligado à região. Além disso, ela queria ficar perto dos
pais. Mas a mulher sempre quis aprender a surfar. Então, quando completou 65
anos, pegou parte do dinheiro da poupança e passou suas primeiras férias
sozinha no litoral. Ela teve uma semana de aulas de surfe e se divertiu
bastante.
Fim.
VI.
Era uma vez uma garota que cresceu lendo revistas que falavam de
produtos de beleza e, por isso, sempre ficava muito preocupada com a pele cheia
de espinhas. Ela tentou um monte de tratamentos com graus de sucesso variáveis,
e nunca saía de casa sem estar totalmente maquiada. Aos 20 anos, começou a usar
produtos anti-idade, pois acreditava que a prevenção funcionaria muito melhor
que a cura. Ao completar 30 anos, ainda tinha acne, mas, por alguma razão, não
parecia se importar muito com isso. Às vezes, saía sem maquiagem. E, apesar dos
cremes que usara aos vinte e poucos anos, ela começou a ter algumas rugas na
testa. Mas agora isso não parecia incomodar tanto quanto na juventude. Aos 40
anos, sua pele continuou a enrugar, ela se preocupava menos ainda e ficava
feliz de ver que as rugas ao redor dos olhos davam a impressão de que ela ria
muito, o que a fazia rir ainda mais; e ela se importava cada vez menos e apenas
usava maquiagem quando queria, sem nunca se sentir obrigada a isso. Quando
completou 80 anos, sua pele estava mais fina e delicada, semelhante a um papel
crepom muito bonito. E ela se sentia cada mais feliz e mais confiante do que
antes.
Fim.
Minibio:
Ana Resende trabalha
como preparadora de originais e tradutora, e é colaboradora da Galera Record, entre outras editoras. Workaholic assumida, está aprendendo a
gostar de videogames, mas sua leitura favorita ainda são os contos de fadas.
Acredita que o príncipe encantado existe, que é um cara legal, que está
investindo na própria realização profissional, anda de Harley Davidson e bebe
Jack Daniel’s.
3 comentários:
Adorei seus contos de fada, Ana! ♥ beijo
Rafa
Achei muito interessante a abordagem do tema. Os contos de fada, e as histórias em geral precisam abrir mais caminhos na atualidade e preencher lacunas que não existiam há anos atrás. Os contos mencionados são bons, e em alguns momentos você acaba sendo guiado a pensar em um final clichê e tradicional, o que não acontece em nenhum deles.
http://recantodelivros.blogspot.com.br/
"Bom, os contos de fadas representam a visão de mundo de quem conta os feitos"
E da época em que foram escritos. Contos de fadas foram escritos para manter as crianças na linha, as mulheres virgens e os homens responsáveis por todos. São valores da época mais do que do autor e por essa razão, precisamos de novos contos :)
beijos
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